Especialista em estudos cubanos, o jornalista Hélio Doyle explica por que a remuneração dos profissionais de saúde de Cuba é paga diretamente ao governo de Raúl Castro
Hélio Doyle
Parece que o último argumento contra a contratação dos médicos
cubanos é a remuneração que vão receber. Pois é ridículo, quando
prevalecem fatos, indicadores internacionais e números, falar mal do
sistema de saúde e da qualidade dos médicos de Cuba. A revalidação de
diploma também não é argumento, pois os médicos estrangeiros trabalharão
em atividades definidas e por tempo determinado, nos termos do programa
do governo federal. Não tem o menor sentido, também, dizer que os
cubanos não se entenderão com os brasileiros por causa da língua –
primeiro, porque vários deles falam o português e o portunhol, segundo
porque os médicos cubanos estão acostumados a trabalhar em países em que
a língua falada é o inglês, o francês, o português e dialetos
africanos, e nunca isso foi entrave.
Resta, assim, a forma de contratação e, mais uma vez sem medo
do ridículo, falam até de trabalho escravo. Essa restrição também não
tem procedência, nem por argumentos morais ou éticos (e em boa parte
hipócritas), nem com base na legislação brasileira e internacional.
Vamos a duas situações hipotéticas, embora ocorram rotineiramente.
1 – Uma empreiteira brasileira é contratada por um governo de país europeu para uma obra.
Essa empreiteira vai receber euros por esse trabalho e levar àquele
país, por tempo determinado, alguns engenheiros, geólogos, operários
especializados e funcionários administrativos, todos eles empregados na
empreiteira no Brasil. Encerrado o contrato no país europeu, todos
voltarão ao Brasil com seus empregos assegurados. Quem vai definir a
remuneração desses empregados da empreiteira e pagá-los, ela ou o
governo do país europeu? É óbvio que é a empreiteira.
2 – Os governos do Brasil e de um país africano assinam um acordo para que uma empresa
estatal brasileira envie profissionais de seu quadro àquele país para
dar assistência técnica a pequenos agricultores. O governo brasileiro
será remunerado em dólares pelo governo africano. A estatal brasileira
designará alguns de seus funcionários para residir e trabalhar
temporariamente no país africano. Quem vai definir a remuneração dos
servidores da empresa estatal brasileira e lhes fará o pagamento, a
estatal brasileira ou o governo do país africano? É óbvio que é a
empresa estatal brasileira.
Por que, então, tem de ser diferente com os médicos
cubanos? Eles não estão vindo para o Brasil como pessoas físicas, nem
estão desempregados. São servidores públicos do governo de Cuba, trabalham
para o Estado e por ele são remunerados. Quando termina a missão no
Brasil (ou em qualquer outros dos mais de 60 países em que trabalham),
voltam para Cuba e para seus empregos públicos.
Médico cubano Juan Delgado foi hostilizado na última segunda-feira. (Foto: O Povo) |
A outra crítica é quanto à remuneração dos médicos cubanos.
Embora menor do que a que receberão os brasileiros e estrangeiros
contratados como pessoas físicas, está dentro dos padrões de Cuba e não
discrepa substancialmente do que recebem seus colegas que trabalham no
arquipélago. É mais, mas não muito mais. Não tem o menor sentido, na
realidade cubana, que um médico de seus serviços de saúde, trabalhando
em outro país, receba R$ 10 mil mensais. E, embora os críticos não
aceitem, há em Cuba uma clara aceitação, pela população, de que os
recursos obtidos pela exportação de bens e serviços (entre os quais o
turismo e os serviços de educação e saúde) sejam revertidos a todos, e
não a uma minoria. O que Cuba ganha com suas exportações de bens e
serviços, depois de pagar aos trabalhadores envolvidos, não vai para
pessoas físicas, vai para o Estado.
A possibilidade de ganhar bem mais é que faz com que alguns
médicos cubanos prefiram deixar Cuba e trabalhar em outros países como
pessoas físicas. É normal que isso aconteça, em Cuba ou em qualquer país
(não estamos recebendo portugueses e espanhóis?) e em qualquer
atividade (quantos latino-americanos buscam emigrar para países mais
desenvolvidos?). Como é normal que muitos dos médicos cubanos aprovem o
sistema socialista em que vivem e se disponham a cumprir as “missões
internacionalistas” em qualquer parte do mundo, independentemente de
qual é o salário. Para eles, a medicina se caracteriza pelo humanismo e
pela solidariedade, e não pelo lucro.
É difícil entender isso pelos que aceitam passivamente,
aprovam ou se beneficiam da privatização e da mercantilização da
medicina e da assistência à saúde no Brasil.
Brasil 247