Praticamente desaparecidos
da emergência e dos ambulatórios, onde deveriam trabalhar todas as
semanas, um grupo de médicos e enfermeiros raramente é visto atendendo
no hospital. Passa o dia no corre-corre para cumprir a extensa agenda de
clientes exigentes nas Zonas Sul e Oeste.
No Rio, 88 médicos estrangeiros — nenhum cubano — entram nesta quarta-feira no terceiro dia de avaliação do Programa
Mais Médicos, no Centro Cultural Banco do Brasil. As aulas são de saúde
pública brasileira e Língua Portuguesa. Eles não escondem a ansiedade.
No estado, serão contratados 70
médicos, 10 deles estrangeiros, para trabalhar em 14 municípios: Belford
Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Itaguaí, Japeri, Mesquita,
Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, Rio, São Gonçalo, São João de Meriti
e Seropédica.
Já no Cardoso Fontes, o urologista André Guilherme Lagreca da Costa Cavalcanti é exemplo do quanto é importante
aparecer: no dia 28 de junho atendeu 36 pessoas que esperavam no
ambulatório.
Foi a única vez naquele mês que os pacientes viram o médico
no hospital.
André Cavalcanti é referência no Rio na
reprodução humana. Além do contrato de 20 horas semanais com o
Ministério da Saúde, é professor da UniRio — 40 horas por semana — e
passa a maior parte do tempo nos consultórios da Barra e de Copacabana.
Sem contar o extra, às sextas-feiras, no centro
de fertilização da Rede D’Or, onde a consulta custa R$ 400. Na saúde
pública, o médico ganha R$ 9 mil por mês.
Outra médica com a agenda
lotada é Mauricea de Santanna. De segunda a sexta-feira, ela atende,
das 13h às 19h, na empresa Sansim, que presta serviço à fábrica de
lubrificantes da Petrobras
Distribuidora, em Duque de Caxias. A hora da
saída é exatamente a mesma que deveria entrar no plantão da enfermagem
do Hospital Cardoso Fontes.
Mas os engarrafamentos na longa viagem de 50
quilômetros entre Campos Elísios e Jacarepaguá devem impedir Mauricea de
chegar no hospital. Seus colegas mais novos não a conhecem.
Os antigos se assustam quando alguém
tenta saber dela. Terças, quartas e sábados, novamente na função de
médica, ela atende no consultório particular, em Madureira. No Cardoso
Fontes, sua carga é de 40 horas por semana e o salário, R$ 8 mil.
Quem também atende na Zona Oeste, só
que duas vezes por semana, é a ginecologista Magali Luppo Cordeiro.
Médica com status de chefia no Cardoso Fontes, ela tem duas matrículas
no Ministério da Saúde e total de 60 horas semanais — ou 12 horas por
dia, já que não trabalha nos fins de semana.
Com a agenda no consultório
particular, fica difícil atender nos dois lugares. No Cardoso Fontes,
Magali recebe, por mês, R$ 16 mil.
Especialistas ilustres que nunca estão disponíveis
A escala de médicos do Hospital
Cardoso Fontes tem nomes ilustres, mas pessoas desconhecidas dos
pacientes. Um deles é o do geriatra Paulo Roberto Fernandes, diretor da
unidade até outubro.
A agenda de atendimento dele é
mistério: fica trancada na mesa da enfermeira Vera Lúcia e ninguém
consegue marcar uma consulta com o profissional — reconhecido como um
dos melhores geriatras e ginecologistas do Cardoso Fontes, onde deveria
trabalhar 40 horas por semana para ganhar R$ 11 mil.
A desculpa é a mesma na hora de
marcar a consulta: “Não há vaga e nem previsão” de quando o médico
estará disponível. Durante a semana, na sala onde atendem os
ginecologistas, nem sinal de Fernandes. Se alguém quiser vê-lo, é só ir
às terças, quartas e quintas-feira a seu consultório, na Barra.
Outro desaparecido do Cardoso Fontes é o
ex-diretor do hospital, o oncologista José Francisco Ferrão. Seu
salário, pago pelo Ministério da Saúde, está à altura do prestígio
profissional: quase R$ 16 mil. Mas os pacientes da unidade — centro de
referência para tratamento de câncer — não conseguem consulta.
O nome do médico não aparece nem entre os
servidores do hospital. Mas é fácil achar o doutor Ferrão. Sete
quilômetros é a distância até sua clínica particular, no bairro da
Taquara, também em Jacarepaguá. Mas há uma condição para ser atendido:
pagar R$ 150 pela consulta.
Estrangeiros têm aulas no Rio de Janeiro
Os 88 médicos vindos de diversos países, como
Egito, Argentina, Grécia, Portugal, Itália e Espanha, que passam por
treinamento no Rio, dizem dar pouca atenção às críticas de colegas
brasileiros.
“Para mim, (as críticas) servem de incentivo”,
disse o neurocirurgião egípcio Morhamed Ali Gad, 35 anos, que já passou
seis meses aprimorando a profissão em Curitiba (PR).
Gaetano de Rosa, 57, clínico geral italiano,
afirmou, porém, que os estrangeiros merecem mais respeito. “Sempre
respeitei a medicina brasileira”, justificou.
A paulista Aline Moraes, graduada em medicina
estética na Itália e que trabalhou por 12 anos em áreas carentes da
Argentina disse que os médicos vieram para somar e não dividir.
Argentino já previa crítica
O cirurgião-geral argentino Jorge Soria, 47,
disse que esperava críticas, mas alega que elas vêm dos que ainda não
conhecem os médicos estrangeiros. “Não duvidem de nossa capacidade e
vontade de melhorar os índices de saúde”.
Jorge Darze, presidente do Sindicato dos
Médicos, voltou a criticar o Mais Médicos. “É um programa eleitoreiro e
que desrespeita a lei. Os políticos, quando adoecem, vão para o
Sírio-Libanês”, ironizou.
Para Lígia Bahia, médica especialista em Saúde
Pública e professora da UFRJ, trazer médicos estrangeiros para o Brasil e
incentivar que brasileiros vão para o interior é uma medida importante.
“Precisamos, entretanto, de mais recursos técnicos, científicos e não
apenas humanos”, ponderou.