As manifestações
que mexeram com o País em junho expuseram não apenas o caráter repressor
da Polícia Militar, mas também o potencial da instituição de ampliar a
violência, em vez de enfrentá-la. O alerta é de Maria do Rosário (PT),
ministra da Secretaria de Direitos Humanos. “É extremamente preocupante
que as polícias continuem abordando a juventude de forma violenta,
sempre como suspeitos, revelando que os manuais de inquérito e abordagem
do período da ditadura continuam vigentes”, afirmou em entrevista a CartaCapital ao sublinhar que a “segurança pública é um direito humano”.
Deputada federal pelo Rio Grande
do Sul antes de assumir a secretaria no início do governo Dilma, Maria
do Rosário diz que, apesar de o governo petista ter enfrentado a pobreza
extrema e promovido a mobilidade social, o Brasil ainda não colheu bons
resultados na diminuição no número de mortes por causas violentas.
“Isso significa que a mortalidade por causas violentas não está
unicamente vinculada à dimensão social e econômica, mas à capacidade de
produzir uma cultura de valorização da vida e da juventude, e o país
está fazendo um caminho na contramão.”
Apesar de afirmar que o governo
nunca deixou de lado o trabalho com os movimentos sociais e a inserção
dos direitos humanos na agenda de combate à pobreza, a ministra
reconhece que a aproximação da presidenta Dilma Rousseff com os tais
movimentos se intensificou nas últimas semanas, em resposta à pressão e
às reivindicações das ruas. “O contato direto com setores da sociedade
organizados e também com os não organizados é responsabilidade de um
governo", disse.
Na manhã desta quinta-feira 18, a ministra lembrou ainda, na conferência 2003 – 2013: Uma Nova Política Externa,
na Universidade Federal do ABC, que os índices de homicídio no Brasil
(27,4 para cada 100 mil habitantes) configuram, ao lado da
superpopulação de 550 mil encarcerados as mais graves violações de
direitos humanos que hoje “envergonham” o País.
Confira os principais trechos da entrevista.
CartaCapital –
Depois dos protestos, o governo está se reaproximando de movimentos
sociais. A presidenta se encontrou mais com eles neste último mês do que
nos últimos dois anos. Isso significa mais direitos humanos na pauta do
governo?
Maria do Rosário
– Na agenda do governo, os temas referentes aos direitos humanos sempre
estiveram presentes, porque a presidenta Dilma considera que os temas
referentes à superação da pobreza extrema e inclusão social estão no
escopo mais amplo dos direitos humanos de caráter econômico, social e
cultural. Então, efetivamente, esses temas nunca saíram da pauta para a
presidenta. O exemplo disso é a própria Comissão da Verdade, a Lei de
Acesso à Informação, o fato de ela ter enviado ao Congresso Nacional o
Sistema Nacional de Enfrentamento à Tortura, que foi aprovado nesta
semana. Há uma série de agendas em curso no País.
Mas é verdadeiro que o governo
articulou suas políticas no último período em um contato com a sociedade
na estrutura de conferência, nos conselhos. E essas manifestações
demonstram que essas estruturas são importantes, mas não podem ser
exclusivas na relação dos governos com a sociedade. As estruturas de
participação direta que foram constituídas em 1988, os conselhos e,
posteriormente, os processos de conferência, se demonstram importantes,
mas não devem ser exclusivos. E esse contato direto da presidenta foi
efetivamente intensificado a partir das manifestações, como um
atendimento às reivindicações e reclames das ruas.
CC – A senhora diz “exclusivo” no sentido de serem suficientes?
MR –
A democracia é algo que permanentemente precisa se renovar em métodos e
do ponto de vista das tecnologias de participação. E o País respondeu à
questão democrática com a Constituição de 1988 combinando a democracia
representativa, o fortalecimento das instituições e a democracia direta,
reconhecendo a existência desses conselhos de direitos. Mas eles também
vivenciam um período que precisam de renovação, se atualizar. E eles
são representativos na sociedade, mas, sem dúvida, o contato direto com
outros setores da sociedade, organizados e não organizados, é
responsabilidade de um governo.
CC –
Os recentes protestos, em especial em São Paulo, trouxeram à tona
novamente a repressão policial, da qual a classe média foi vítima e os
mais pobres estão sujeitos todos os dias. Isso retomou o debate sobre a
desmilitarização da polícia. Como a senhora vê esse debate?
MR – Do
ponto de vista dos direitos humanos, o tema das polícias é essencial
para o Brasil, porque diz respeito à capacidade que nós temos de superar
as marcas da violência que o País vive de forma brutal. O mapa da
violência, na sua versão mais recente, indica que somos o sétimo
colocado do mundo em casos de homicídio. Para cada 100 mil habitantes,
27,4 são vítimas de homicídio. E o número salta para 54,8 quando se
trata de adolescentes e jovens entre 14 e 25 anos. Fizemos um
enfrentamento importantíssimo da pobreza no último período, mas ao mesmo
tempo em que reduzimos os índices de pessoas vivendo na situação de
pobreza extrema e produzirmos uma mobilidade social importante no País,
não colhemos frutos positivos na diminuição no número de mortes por
causas violentas no Brasil. Isso significa que a mortalidade por causas
violentas não está associada exclusivamente à superação da pobreza. Não
está unicamente vinculada à dimensão social e econômica, está vinculada à
capacidade de produzir uma cultura de valorização da vida, de
valorização da juventude, e o País está fazendo um caminho na contramão.
São extremamente preocupantes as
manifestações que indicam, por exemplo, a descaracterização do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) e a tentativa de responsabilização,
com base no Código Penal, e prisão dos adolescentes a partir dos 16 anos
ou até mais jovens que isso. Assim como é preocupante que as polícias
continuem abordando a juventude de uma forma violenta, sempre como
suspeitos, revelando que os manuais de inquérito e abordagem do período
da ditadura continuam vigentes. Segurança pública é um direito humano.
Não diz respeito exclusivamente às polícias, mas têm o potencial de
ampliar a situação de violência ou de enfrentá-la. E o modelo de polícia
que nós temos no Brasil, no qual o auto de resistência continua sendo
utilizado como uma licença para matar, acaba fazendo com que boa parte
da estrutura das polícias também alimente situações de violência,
particularmente na periferia das grandes cidades.
A desmilitarização da polícia
sempre foi uma agenda de direitos humanos, mas é preciso trabalhar com o
sistema atual. Para uma perspectiva de direitos integrais e de respeito
à vida seria necessário trabalhar não apenas com uma análise das
polícias militares, mas também das próprias polícias civis, das
atribuições que estão nos estados, na união. Enfim, de forma mais global
com o sistema de policia.
Um projeto que certamente o Ministério da
Justiça precisa desenvolver em diálogo com os estados, acompanhado de
medidas essenciais em direitos humanos, como a criação de ouvidorias
independentes, de corregedorias com autonomia no âmbito das polícias, e
uma renovação integral dos mecanismos de formação das polícias no
Brasil.
Além de verificar o sistema como
um todo, queria destacar também a importância da área técnica das
perícias com autonomia para a realização de seu trabalho de inteligência
e destacar duas resoluções: a resolução nª 8 de 2012, que foi
apresentada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH), que indica a abolição do registro de auto de resistência e
propõe outras formas quando a morte é realizada por policiais, e a
resolução nº 6 de 2013, que trata da normatização da utilização de
armamentos de menor potencial de letalidade.
CC – Estaríamos falando da PEC 37, de deixar o poder de investigação a cargo exclusivamente da polícia?
MR –
Não, estamos falando da autonomia dos setores de perícia técnica mesmo,
da produção de provas. Alguns estados, por exemplo, têm seu
departamento de perícia vinculado à polícia, outros têm um instituto
geral de perícia. Foi uma luta muito, mas conquistamos o direito de que a
perícia técnica possa ter autonomia em relação à atividade policial.
Não são policiais, são técnicos peritos que trabalham no Departamento
Médico Legal. A ideia é que esse grupo técnico tenha autonomia e não
seja de nenhuma parte.
CC –
Como partido, o PT tinha em uma de suas principais bandeiras os
direitos humanos. Não é estranho, portanto, que hoje tenha deixado a
Comissão de Direitos Humanos nas mãos de um parlamentar que fala em
"cura gay" e não está voltado às minorias?
MR –
Ainda que não isente o PT, eu penso que não é uma responsabilidade
somente do PT a defesa dos direitos humanos. Direitos humanos como um
conjunto de princípios que compõem os textos legais e a própria
Constituição Federal é um tema de responsabilidade das instituições.
Então é uma responsabilidade institucional da Câmara dos Deputados
assegurar que a Comissão de Direitos Humanos atenda a todos os segmentos
que estão vulneráveis diante da violação dos seus direitos. É,
portanto, uma falha do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados.
Ainda que o PT, politicamente, tenha suas responsabilidades.
CC – O PT enquanto governo, a senhora diz?
MR –
Como governo não. Foi muito difícil para nós, como governo, agirmos
diante desse tema. Há uma autonomia efetiva do parlamento na escolha de
seus representantes pelas comissões, e a interferência governamental
nunca é bem vista por parte do Congresso. Agora, não há nenhuma dúvida
que esses retrocessos têm de ser percebidos como situações que isolam o
próprio Parlamento da sua relação com a sociedade.
CC
– Alvo de críticas, a Comissão Nacional da Verdade corre o risco de não
conseguir chegar a um consenso até o fim de seu mandato e ficar no 0x0:
não ter uma posição comum sobre a revisão da Lei de Anistia ou mesmo
sobre o julgamento de agentes torturadores do Estado. Caso isso ocorra,
será uma derrota para o setor de direitos humanos do governo?
MR –
A Comissão da Verdade tem autonomia como uma estrutura que não está sob
comando do governo. Os comissionados, a lei determina isso, têm plena
autonomia e confiança pública para realizarem as suas atribuições. Eu
considero que não é possível fazer um trabalho tão complexo e necessário
para a democracia brasileira, para o hoje e para o futuro, nessa
oportunidade histórica que está aberta depois de tantos anos e tanta
luta, sem ouvir profundamente os familiares e sem tratar da questão dos
mortos e desaparecidos políticos.
Ainda que a comissão tenha
autonomia na realização de seus trabalhos e tenhamos total confiança de
que chegará a um relatório muito positivo para a democracia no Brasil,
eu acredito que ela precisa produzir uma relação de estreita confiança
com as famílias dos mortos e desaparecidos, e creio que o processo pelo
qual realiza suas atribuições é tão importante quanto seu relatório
final. Então, a possibilidade de mobilização da sociedade em torno dos
temas referentes à memória e verdade, nos caminhos para que as pessoas
conheçam o que nos constituiu como sociedade brasileira e as
contradições que nos constituem, podem ser realizadas pela Comissão da
Verdade não apenas com a meta de um relatório final, mas na sua jornada
pelo Brasil.
A Secretaria de Direitos Humanos
contribuiu no momento de organização da comissão e na busca pelo apoio
parlamentar para a votação da matéria, mobilizando a sociedade
brasileira e fomentando os comitês autônomos. Hoje temos mais de 100
comitês por memória, verdade e justiça pelo Brasil. A nossa tarefa era
propor comitês, mobilizá-los e jamais tutelá-los, mas produzir uma
capacidade inicial de que se organizassem no território nacional. Há uma
expectativa por parte desses comitês, assim como dos familiares dos
mortos e desaparecidos, de que a Comissão da Verdade realize um trabalho
não apenas com vistas ao relatório final, mas um trabalho que responda
no cotidiano de suas atribuições como fez efetivamente em relação ao
Vladimir Herzog, no reconhecimento de um atestado de óbito verdadeiro, e
como está realizando também sob o comando da doutora Rosa Cardoso, que
tem uma dedicação excepcional como coordenadora, na busca daquilo que
envolve a morte do presidente João Goulart.
CC
- Como a senhora enxerga as divergências dos membros da Comissão
Nacional da Verdade em relação à revisão da Lei de Anistia? As
divergências atrapalham o trabalho da comissão?
MR –
As decisões dos membros sobre como vão compor o relatório final é
deles. Mas a expectativa nossa é a da escuta da sociedade, ainda que a
comissão não tenha sido formada com o objetivo punitivo. Todos nós
sabemos que a comissão foi formada com objetivo de dar os primeiros
passos nos temas referentes à memória e verdade, mas tudo o que puder
compor para que o Brasil esteja adequadamente respondendo à normativa
internacional em direitos humanos pode ser bastante importante.
CC
- Qual a opinião da senhora sobre ampliar as penalidades para
adolescentes que cometem infrações (de três para oito anos em regime
fechado para assassinatos e latrocínios) como forma de evitar a redução
da maioridade penal, apoiada por grande parte da população?
MR –
Primeiramente, a questão da participação dos adolescentes em atos
contra a vida e contra a integridade humana precisa ser desmistificada
no País. Nós temos hoje no Brasil cerca de 80 mil adolescentes que
cumprem medidas socioeducativas em meio aberto. Então, os juízes
avaliaram que aquilo que realizaram e que os colocou nas condições de
cumprir tais medidas nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) não teve potencial ofensivo contra qualquer pessoa. Vinte mil
adolescentes cumprem medidas em meio fechado, estão internados no
Brasil. Temos uma população adulta de 550 mil presos no Brasil em regime
fechado e uma população de 20 mil adolescentes de 12 a 18 anos que
cometeram infrações. Destes 20 mil, somente 17% cometeram atos contra a
vida. Os outros estão ali por tráfico de drogas e por outros atos que
não foram de ataque a uma pessoa. O que ocorre é que as situações mais
perversas e difíceis envolvendo 17% dos 20 mil adolescentes (cerca de 3
mil) em todo o território nacional são tratados de forma midiática a
gerar uma opinião como se os adolescentes fossem responsáveis por toda a
criminalidade do País.
A exceção vira a regra. E é por
isso que nós observamos que a redução da maioridade penal não será
ativamente positiva para a redução da violência no País. Em primeiro
lugar, não responde aos objetivos que alguns têm levantando porque eles
são uma minoria. Por outro lado, os números de adolescentes que morrem
por violência estão associados, do meu ponto de vista, a essa
espetacularização da violência cometida por alguns. Em um processo no
qual é mais fácil serem resgatados, vamos perder esses adolescentes se
eles ingressarem diretamente no sistema prisional.
Porque, sem ter
nenhuma visão romântica, quando eles entrarem no sistema prisional
estarão ingressando em um sistema perverso, de violações de direitos, e
também nas próprias redes criminosas, que atuam dentro dos presídios. E
agirão contra a própria sociedade e contra a si próprios com um
potencial ainda maior de violência. Então, a redução da maioridade penal
é algo que nós rejeitamos em todos os sentidos.
Sobre a ampliação de medidas, um
grupo de trabalho organizado pela Unicef tem procurado debater esse
tema. Mas não há, por parte do governo, uma posição definida. E quem
está debatendo esse tema neste momento é o Conselho Nacional da Criança e
do Adolescente. O simples aumento da medida socioeducativa também não
poderá dar respostas positivas. A possibilidade de mudarmos tais medidas
para melhor e darmos respostas positivas está em melhorarmos o sistema
socioeducativo no Brasil. A nossa busca é um envolvimento maior do
Ministério da Educação, justamente no sentido preventivo, é o
enfrentamento à participação no tráfico de drogas, nos esquemas
criminosos. Porque, em geral, os adolescentes também são mobilizados a
partir da presença dos grupos criminosos com a presença de adultos. Mas
uma coisa é certa: a legislação brasileira deve ser muito rigorosa com
os adultos que mobilizam a participação dos adolescentes e os chamam
para o exercício de ações criminosas.
Fonte: Carta Capital