Por Angela Marina Bravin dos Santos (UFRJ)
INTRODUÇÃO
É lugar comum no meio acadêmico, quer entre historiadores quer entre
gramáticos e lingüistas, a idéia de que a fala carioca se sobrepõe aos
outros falares, o que lhe confere um suposto “status” de modelo a ser
seguido. A influência do falar carioca já era sentida, segundo o
historiador Alencastro (1997:34), bem antes do advento dos meios de
comunicação:
Bem longe do advento do rádio e muito antes ainda da televisão, os habitantes do Rio já influenciavam a fala dos habitantes das outras províncias.(ALENCASTRO, 1977:34).
Ainda sob o olhar de historiadores, parece que tal “status” se
confirmou em dois Congressos Nacionais: o de Língua Cantada, organizado
em 1937 por Mário de Andrade e o de Língua Falada no Teatro, realizado
em Salvador em 1956:
Carvalho e Melo e Silva Lisboa afirmavam com intuição, uma verdade que veio a ser confirmada por dois Congressos Nacionais de Língua Cantada , de ser a do Rio de Janeiro a pronúncia padrão do Brasil.(RODRIGUES, 1986:48)
Sob a ótica de alguns estudiosos da língua, como Révah, a história não era diferente: “ Para as referências à língua comum do Brasil, utilizaremos antes de tudo o falar do Rio de Janeiro” (RÉVAH, 1958:2). Révah seguia, provavelmente, os caminhos abertos pelos congressistas de 1937 e 1956 que, por considerarem necessária uma pronúncia unificada ou padronizada no teatro, resolvem escolher a fala carioca como a língua-padrão do teatro, da declamação e do canto eruditos do Brasil, ainda que reconhecessem como características das línguas “a pluralidade de maneiras de falar, as variações fonéticas”.[1]
Conforme Leite & Callou, buscou-se nesses Congressos o estabelecimento de normas de âmbito generalista que, de um lado, representassem o ideal lingüístico da comunidade brasileira como um todo e de outro, não fizessem com que se corresse o risco de chegar a uma média que não correspondesse a nenhuma das variedades faladas no Brasil, no passado ou no presente.” (LEITE & CALLOU, 2002:10-11)
As questões que se colocam são:
1) o falar carioca representa o ideal lingüístico da comunidade brasileira como um todo?
2) pode-se tomar o falar carioca como a média que corresponde às variedades faladas no Brasil?
3) o caráter de pronúncia padrão do português do Rio de Janeiro existe de fato ?
4) há argumentos lingüísticos e extralingüísticos que justifiquem a escolha de um determinado dialeto como padrão?
Não se podem obter respostas para tais perguntas sem levar em conta os diferentes conceitos de norma lingüística: de um lado, a idéia de que norma e classe social se inter-relacionam; de outro, impõe-se a visão de que, lingüisticamente, não existe um falar melhor que o outro. Se faz necessário também buscarmos uma definição de língua padrão.
NORMA E LÍNGUA PADRÃO
Mattoso Câmara[2] define norma como o “conjunto de hábitos lingüísticos vigentes no lugar ou na classe social mais prestigiosa no País”. Note-se que o caráter social de prestígio é o que determina, conseqüentemente, o prestígio de determinado dialeto, transformando-o em modelo lingüístico de uma comunidade, ou seja, na língua padrão, que segundo Cunha e Cintra é, dentre as variedades de um idioma, a mais prestigiosa:
A língua padrão, por exemplo, embora seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque atua como modelo, como norma, como ideal lingüístico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua função coercitiva sobre outras variedades, com o que se torna uma ponderável força contrária à variação. (CUNHA & CINTRA, 1985: 3)
Assim, tomando por base o conceito de norma, postulado por Mattoso Câmara, as respostas às perguntas acima seriam positivas, já que, afinal de contas, no princípio, o Rio era a Corte e, por isso, um lugar com ares europeizados, portanto, de prestígio, conforme se observa no texto de Alencastro:
A corte, as embaixadas estrangeiras, o comércio marítimo, as escalas contínuas de viajantes que cruzam o Atlântico Sul, a chegada de profissionais europeus, engendram no Rio de Janeiro um mercado de hábitos de consumo relativamente europeizados(…) Novidades nacionais e estrangeiras recebiam a aprovação da sociedade e da imprensa da corte__transformando-se em moda imperial__, e daí irradiavam para o resto do país. (ALENCASTRO,1977:37- 51)
E é na Corte que a relação dominador/dominado se estabelece de maneira mais incisiva, já que as ordens vinham da elite portuguesa e não de qualquer dono de terra. Por isso, deduz-se que assimilar a fala dos donos do poder significava alcançar prestígio..
Perseguindo dados que comprovem o prestígio do Rio de Janeiro, podemos argumentar, ainda, que, além de ter sido Corte, o Rio apresenta a menor taxa de analfabetismo entre as 12 maiores capitais do país. É aqui também que se constata um expressivo número de pessoas com nível superior. No tocante aos aspectos social e econômico, a Cidade Maravilhosa reúne bairros com alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), destacando-se a Lagoa, cujo “IDH, de 0,902, é semelhante ao da Itália”.( O Globo, 24/03/2001).
Se partirmos da definição de língua padrão postulada por Celso Cunha e Cintra, chegaremos também a respostas positivas. Entretanto, essa mesma definição nos leva a pressupor que o falar carioca não poderia ser tomado como modelo, uma vez que a “ponderável força contrária à variação” é minada pelo caráter extremamente heterogêneo do “ linguajar carioca”, que, provavelmente, já no final do século XIX, era marcado por quatro resultantes: a) um falar de prestígio; b) um falar de caráter mais popular; c) um falar rural e d) um falar oriundo da confluência entre os habitantes das regiões rurais e das regiões centrais. (CALLOU & AVELAR,2002:103)
NORMA : o que é comum
A heterogeneidade do falar Rio de Janeiro ilustra-se nas diferentes realizações do S implosivo, verificadas por MARQUES & CALLOU (1977) e da vibrante, investigada só por CALLOU (1985): vimos que há 6 variantes para cada variável. Temos de convir que existe muita variação para a escolha de uma pronúncia padrão. A propósito, pergunta-se: em relação ao S implosivo, qual seria a pronúncia ideal: a palatal, marca registrada do carioca (NASCENTES, 1953: 52), ou a alveolar, variante considerada padrão e mais freqüente em outras regiões? E o que dizer das linguodentais: prevalecerão as realizações do /d/ e /t/ diante de /i/, ou seja, as africadas, consideradas por Nascentes (1953) como características do nosso linguajar?
A resposta está no artigo de Révah, em que o autor discute a evolução da pronúncia do português, tendo por base as determinações do Congresso de 1956:
Trata-se de fatos muito generalizados, mesmo na linguagem das classes
superiores da sociedade, mas também de fatos que a língua padrão, que o
Congresso tem por missão definir, terá tendência a rejeitar, como
prejudiciais à boa feição da língua:
1)ditongação de vogais acentuadas antes do s final: rapáys de rapaz, déys de dez(…) Encontram-se também variantes onde a consoante final é uma chiantes.
2)a palatalização (em graus diversos) das consoantes t, d, l, diante de i. (RÉVAH, 1958:9)
A julgar por tais palavras, parece que a palatal e a africada, realizações comuns no português carioca, ficaram de fora da “boa feição da língua”, o que nos faz elaborar outra pergunta: que norma de pronúncia padrão é essa que exclui realizações fonéticas características da cidade do Rio de Janeiro?
Com base nesses argumentos, às perguntas elaboradas inicialmente
seriam atribuídas respostas negativas, já que os conceitos de norma e
língua padrão apresentados não dão conta do caráter extremamente
heterogêneo do falar carioca. O conceito de norma que talvez resolva a
questão vem de Coseriu (1980). Argumenta o autor que a norma da língua
contém tudo o que é comum e constante, não existindo uma variedade de
determinada língua superior a outra; é apenas igual ou diferente. Assim,
diferentes normas podem variar no seio de uma comunidade idiomática sem
estar atreladas a julgamentos de valor. (CUNHA, 1985)
Deduz-se, pois, que, sob a ótica coseriana, não há justificativa para tomarmos a fala carioca como o ideal. MAS a suposta supremacia existe. Até professores de Língua Portuguesa, extremamente conservadores no que tange à norma culta, como Pasquale Cipro Neto, a reconhece. Diz ele: “ Acho que no cômputo geral, o carioca é o que se expressa melhor sob a ótica da norma culta.” (VEJA de 10.09.97). O que, provavelmente, o referido mestre não sabe é que a escolha de um dialeto como modelo lingüístico de uma comunidade é fenômeno próprio das línguas de cultura. Isso não significa que, lingüisticamente, o dialeto escolhido seja superior ou mais importante. Se a escolha recai sobre falares de uma classe ou lugar considerados prestigiosos é porque fatores extralingüísticos influenciam a opção pelo uso de uma determinada variedade.
A INFLUÊNCIA DE FATORES SÓCIO-ECONÔMICOS E CULTURAIS
Rosenblat (1967), referindo-se aos critérios de correção lingüística,
mostra que a expansão de fenômenos lingüísticos faz parte da história
milenar das línguas, embora anteriormente ocorresse de maneira menos
intensa e vertiginosa. Segundo o autor, uma cidade, sobretudo as
capitais ou grandes centros regionais, ganha prestígio, transformando-se
em foco de expansão lingüística graças a um jornal, a uma universidade
ou a uma emissora de rádio e televisão. Para o autor, a padronização de
um modelo impõe-se pela necessidade de a comunidade lingüística atingir,
principalmente no ensino, uma norma abstrata e idealizada.
Sem dúvida nenhuma, o Rio irradia cultura. Não nos esqueçamos de que não só as primeiras Universidades brasileiras surgiram na Sede do Império como aí se deu o início da imprensa, cujo discurso se pautava na linguagem mais apurada da Corte (ALENCASTRO, 1977), lugar preferido também pelos grandes escritores brasileiros: “ Todos os grandes escritores brasileiros moravam na corte” (MACHADO DE ASSIS, apud ALENCASTRO, 1977: 35). Nos aspectos sócio-econômicos, alguns já mencionados anteriormente, o Rio constituiu-se no principal centro econômico, uma vez que a Baía de Guanabara se tornou a porta de entrada de diferentes produtos e de pessoas oriundas de outras regiões, intensificando-se aqui não só o intercâmbio lingüístico mas o processo de mobilidade social.
Estima-se que 15 mil portugueses aqui aportaram (CALLOU e AVELAR,
2002). Eram integrantes da classe dirigente. No início, concentraram-se
nas freguesias da Candelária e de São José, espaço que hoje faz parte do
Centro ( Rua dos Inválidos, Rua do Lavradio, Rua do Resende), Glória e
Catete. Nas freguesias de Santa Rita e Santana, atuais Saúde, Santo
Cristo e Gamboa, fixaram moradia pessoas de baixa renda, entre escravos
de ganho e trabalhadores livres. A cidade expande-se em conseqüência da
intensificação das relações sócio-econômicas nessas freguesias. A
classe mais abastada procura outras localidades em direção,
principalmente, à orla marítima. Os indivíduos menos favorecidos buscam
moradia nas Zonas Norte e Oeste.
Até parece que os congressistas de 1937 e 1956 sustentaram seus argumentos com base nas declarações de Rosenblat Apesar de não se pautarem em critérios científicos rígidos, talvez porque a época não permitisse, os seguidores de Mário de Andrade intuíam que, subjacente à escolha de um dialeto padrão, pairam fatores de ordem sócio-econômica e cultural. Mas não se impõe um modelo lingüístico por decreto. O que se fez foi apenas confirmar uma realidade que é conseqüência do próprio desenvolvimento sócio-econômico e cultural do Rio de Janeiro, cujo falar, como qualquer outro, possui características lingüísticas próprias.
Na verdade, o que existe é uma tentativa de padronizar a pronúncia brasileira, eliminando-se qualquer vestígio de regionalismo. Se escolheram o português carioca como modelo é mais por questões sócio-históricas que lingüísticas. Subjazem à escolha resquícios de uma sociedade carioca moldada pela relação senhor/escravo, em que o poder estava em jogo. Quando o poder entra em jogo, vence o modelo lingüístico do dominador. Provavelmente, se outra cidade do Brasil tivesse passado pelas circunstâncias que o Rio passou, não seria o português carioca o escolhido, mas a fala dessa hipotética região.
CONCLUSÃO
Por mais que tentemos argumentar contra a idéia de que o falar
carioca não deva ser considerado o modelo lingüístico brasileiro, uma
vez que, lingüisticamente, não há um dialeto superior, não se pode negar
a importância dos fatores extralingüísticos para os fenômenos da
linguagem, os quais justificam a escolha. E um dos conceitos que a
explica é o de NORMA, não na visão coseriana, mas na que sustenta a
suposição de que, em uma língua, há sempre uma variedade de prestígio
falada por uma elite, também de prestígio.
O suposto modelo de fala da cidade do Rio de Janeiro não reflete a
realidade lingüística de seus habitantes. Trata-se de uma abstração. O
que ocorre é a neutralização dos regionalismos, resultando em uma busca
de um padrão idealizado, SUPÕE-SE, de base carioca.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCASTRO, L.F. (org) (1977). História da vida privada no Brasil. V. 2 São Paulo, Companhia das Letras.
CALLOU, D. & MARQUES, M . H (1975). O –S implosivo na linguagem do Rio de Janeiro. In: Littera: revista para professor de português e de literaturas de língua portuguesa VOL. V: Rio de Janeiro, Grifo 9-137.
CALLOU, D. (1987) Variação e distribuição da vibrante na fala urbana culta do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, PROED – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
CALLOU, D. (2002). Da história social à história lingüística: o Rio de Janeiro no século XIX. In: ALKMIM, Tânia Maria (org.) Para a história do português brasileiro. VOL. III: Novos estudos Humanitas/FFLCH/USP 281-292.
CALLOU, D & AVELAR, J. (2002). Subsídios para uma história do
falar carioca: mobilidade social no Rio de Janeiro do século XIX. In:
Para a história do português brasileiro. VOL. IV. Notícias de corpora e outros estudos. Rio de janeiro, UFRJ/LETRAS, FAPERJ: 95-112.
CAMARA, Mattoso. Dicionário de filologia e gramática. Rio de Janeiro, Jozon Editor.
COSERIU, Eugenio. (1980). Lições de lingüística geral. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico.
CUNHA, Celso & CINTRA, L. (1985). Nova Gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
LEITE, Y & CALLOU, D. (2002). Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro, Zahar Editor.
RÉVAH, I.S. (1958). A evolução da pronúncia em Portugal e no Brasil
do século XVI aos nossos dias. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE LÍNGUA FALADA
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RODRIGUES, J. H. (1986). História viva: São Paulo, Global Universitária.
ROSENBLAT, Angel. (1967). El critério de correccion lingüística.
Unidad o pluralidad de normas em el espanol de Espana y América. In: EL
SIMPOSIO DE BLOOMINGTON, Bogota, Instituto Caro y Cuervo.
[1] In: Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro (1958:129)
[2] Dicionário de Filologia e Gramática (s/data), p.281.
Fonte: Diário do Rio