Emenda Constitucional 72 tem incidência imediata - Claudio Pereira
Nada nos chegou de graça, dizia o professor Darcy Ribeiro, tentando
traduzir as transformações de um país que ainda busca inaugurar uma era
de cidadania participativa. Na origem, fomos destinados a ser uma
simples feitoria, daí porque consideramos muito natural, ainda nos dias
de hoje, apartamentos e casas com quartinhos nos fundos, para abrigar os
"empregados domésticos" — trabalhadores que estão à disposição de seus
empregadores 24 horas por dia, de segunda a sexta-feira, como se não
tivessem sua própria vida para viver, seus próprios filhos para cuidar.
A feitoria, porém, hoje é uma nação, que apesar de ter sido a última
do mundo a abolir a escravidão, começa a avançar em conquistas sociais.
Desde 26 de março, é digno de comemoração o reconhecimento pleno dos
direitos trabalhistas dos chamados trabalhadores domésticos (jornada de
44 horas semanais, FGTS, horas extras, seguro desemprego, creche, entre
outros). Para dizer o mínimo, a discriminação que constava da
Constituição desrespeitava não apenas uma classe de trabalhadores, mas
nosso próprio sentido de nacionalidade, de pertencimento a uma República
de cidadãos livres e iguais.
Uma vez aprovada, a Emenda Constitucional 72 incide de imediato sobre
as relações de trabalho, inclusive sobre os contratos hoje em curso. E
não se diga que os contratos anteriormente firmados são atos jurídicos
perfeitos. A emenda constitucional não retroagirá, incidindo sobre o
trabalho realizado antes do início da sua vigência. Mas incidirá sobre o
trabalho que se realize posteriormente, ainda que o contrato que lhe
esteia esteja em vigor na data de sua promulgação. O contrato de
trabalho não é a única fonte da qual emanam todos os direitos e
obrigações trabalhistas: as leis, os regulamentos, os acordos coletivos,
os tratados internacionais e, obviamente, a Constituição e suas emendas
também são fonte do direito do trabalho.
Sustentar que a nova emenda não se aplica aos contratos já em vigor
equivaleria a defender que, por ocasião da Lei Áurea, que aboliu a
escravidão no Brasil, se reconhecesse a validade dos títulos de
propriedade dos escravos obtidos anteriormente. A nova lei tornou
inválidos os títulos constituídos, do mesmo modo que, agora, a emenda
torna inválidos os contratos de trabalho com ela incompatíveis.
Outros passos precisam ser dados para zerar nosso déficit social.
Temos de abolir o preconceito de raça, gênero e orientação sexual, o
trabalho escravo e o trabalho infantil.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, em torno de 4,8
milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, trabalham para
viver. Quantas crianças trabalham para fabricar produtos que,
inadvertidamente, usamos em nosso dia-a-dia e sobre os quais de nada
suspeitamos? Poucas coisas são tão incompatíveis com a dignidade humana
quanto a tolerância com o trabalho infantil. Nada obstante, a prática
está viva nos desafiando, não só no interior, mas também nas grandes
cidades.
O trabalho escravo, não obstante inúmeras iniciativas no sentido de
erradicá-lo, ainda persiste — em boa medida pela dimensão territorial do
país e das limitações do aparato atual de fiscalização do trabalho. A
Comissão Pastoral da Terra (CPT) calcula que haja cerca de 25 mil
trabalhadores escravizados no Brasil. Pela estimativa da Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), esse número chegaria
a 40 mil. Tão importante quanto a Emenda 72 será a aprovação da PEC do
trabalho escravo, que prevê a desapropriação das terras, sem o pagamento
de qualquer indenização, em que se verifique a prática do trabalho
escravo.
Em tempo de judicialização da política, o Poder Legislativo mostra,
com a edição da emenda, o vigor da democracia brasileira. O passo foi
importante não só para atribuir dignidade aos trabalhadores domésticos.
Ganham os trabalhadores domésticos, mas ganhamos todos nós: com a Emenda
Constitucional 72 avançamos seriamente no sentido de constituir
comunidade cidadã, de homens e mulheres livres e iguais.
*Claudio Pereira de Souza Neto é secretário-geral do Conselho Federal da OAB
Artigo publicado na revista eletrônica Conjur em 8 de abril de 2013