É de fato, hodiernamente, um dos mais badalados assuntos, de maior
rodagem entre as instituições de poder, na imprensa, e consequentemente
na sociedade. Falo do que se convencionou denominar de "ativismo
judicial", muito em razão da Justiça constitucional que se faz
interveniente e capital em sua derradeira palavra final de dizer o
direito dentro em um Estado Democrático de Direito.
Vivencia-se um período de inexorável descrédito das instituições
políticas de poder do país. Com um Legislativo material e moralmente
incapacitado a toda vista, representa mais a função Executiva de Estado
que propriamente o povo que nosso regime constitucional elegeu como o
titular do poder de um modelo de democracia representativa. O
Legislativo tornou-se uma função de poder carcomida pela ausência de
identidade própria que se voltasse ao interesse público, e já por
manifestação volitiva do próprio Poder Constituinte fez-se iniciar um
processo de espraiamento da supremacia constitucional, elegendo o
Judiciário, em especial o STF, como o guardião e último efetivador da
vontade constitucional.
A Constituição de 1988 adotou o modelo Socialdemocrata ao talante da
tendência mundial, elevando os Direitos Fundamentais ao patamar de
prioridade de Estado nos termos dos Direitos Humanos incorporados a
Carta Maior de quase todos os países do mundo contemporâneo. Percebe-se
nítido caráter de Estado-Constituição voltado aos Direitos de 2ª
Dimensão (Direitos Sociais, Econômicos e Culturais), com especial
proteção ao primeiro deles.
Um Estado Social, prestador, interveniente, não se negando por obvio
os Direitos de 1ª Dimensão, as liberdades públicas, mas indubitavelmente
priorizando o modelo de um Estado intervencionista na ordem social. Com
a incorporação dos Direitos Humanos a CR/88 pelo Poder Constituinte na
forma de Direitos Fundamentais protegidos como Cláusulas Pétreas já se
proporcionou um espaço de blindagem onde o volátil Poder Constituído
(Congresso Nacional) não poderia mais manipular. Já naquele momento
deu-se o "start" para um gradual processo de deslegitimação do
Legislativo, que já contava com uma história pouco estimulante, e que o
tempo só fez corroborar o inicial acerto do Constituinte "originário"
"deslegitimador".
Ao se perpetrar uma Constituição fortemente principiológica (com
abertura axiológica), repleta de mandamentos de otimização nos
ensinamentos de Alexy, abriu-se espaço a um maior ativismo do Tribunal
Constitucional que, como função precípua, deveria tutelar a supremacia
da Constituição, efetivando-a, realizando-a, não mais como mero
legislador negativo (expressão cunhada de Kelsen), mas como agente
implementador último, capaz de no momento que fosse provocado a sair de
seu estado de inércia pela ineficiência das demais Funções de Poder
(Legislativa e Executiva) pudesse restabelecer a vontade constitucional
de um Estado socialdemocrata que deve efetivamente assegurar ao cidadão
os Direitos Fundamentais constitucionalizados.
Não haveria "ativismo judicial" se os direitos fundamentais, por
exemplo, restassem prestados nos termos da Constituição, pois a Função
Judiciária só se ativa quando provocada a partir da ineficiência da
Função Executiva em prestar os direitos fundamentais por suas políticas
públicas e do legislativo, de legislar de modo a conferir eficácia aos
mandamentos fundamentais.
A exclusão da Justiça Constitucional do cenário de implementação, em
uma cogitação, ainda que hipoteticamente inviável, transformaria o
Estado social em um Estado liberal de fato, permitir-se-ia um
imponderável retrocesso que em um Estado capitalista marcado pelas
desigualdades extremas jamais se compatibilizaria. O chamado "mínimo
existencial" não seria mais sindicável pelo Estado-juiz, e a
argumentação da "reserva do possível" passaria a ser automaticamente a
tônica de um jogo de não implementação dos onerosos Direitos
Fundamentais prestacionais, âmbito onde o orçamento público encarna o
papel que procura deslegitimar as necessidades fundamentais dos
hipossuficientes.
Neste cenário de horror, segundo as nossas hipossuficientes
realidades, o Parlamento voltaria a preponderar com suas decisões
majoritárias, e as minorias seriam sumariamente esmagadas sem direito a
pleito. O Estado liberal encabula a Justiça Constitucional quando
chamada a fazer prevalecer Direitos sociais nas omissões materialmente
imputadas ao Estado-Executor e ao Estado-Legislador.
Propostas de emendas à Constituição andam vagando tendentes a
exatamente diminuir o papel de protagonismo do Judiciário em um Estado
Democrático de Direito, inclusive procurando calar um Ministério
Público, essencial colaborador para o funcionamento de um Judiciário
eficaz. Dentro da estrutura do Judiciário, o STF tornou-se a bola da vez
a partir do estouro do mensalão, onde Executivo e Legislativo
praticaram crimes que tentaram chamar de política, uma rebelião de poder
contra a moralidade pública e a efetiva aplicação do princípio da
Supremacia da Constituição, que por obvio não pode ser tolerada.
Argumentos toscos só admissíveis aos leigos e aos de má-fé são
alçados como forma de deslegitimar algumas atuações de "ativismo
judicial". Procuram incutir dentro da sociedade, que as decisões
legítimas e democráticas devem ter a participação preponderante do
Legislativo e/ou do Executivo, eleitos pelo povo.
A estes não custa lembrar que a Constituição é obra preponderante do
Poder Constituinte, representantes do povo de maior importância na
história de um Estado Constitucional, retalhada, é verdade, pelo "Poder
Constituído", que também goza de legitimação popular e que a partir da
criação de ambos que se construiu a atuação da Função Judiciária, que se
atribuiu o papel de efetivador último das vontades do legislador
constitucional, entre elas o papel de aplicador subsidiário dos Direitos
Fundamentais não prestados a sociedade, de moralizador da política
quando esta se torna instrumento para a perpetração criminosa, enfim o
grande sustentáculo de um Estado Democrático de Direito constitucional, e
por isso, com indelével carga de legitimação popular, inquestionável.
Não há nada mais legítimo do que agir nos termos da Constituição.
Deixo exemplos aclaradores capazes de diferençar um Estado social
constitucional interventor, de um Judiciário preponderante, para um
Estado nos mesmos moldes, mas sem a prevalência do Judiciário,
comparando ainda a um Estado liberal, de defesa, onde o Estado-juiz está
vocacionado basicamente para a manutenção das liberdades públicas.
Quando um hipossuficiente encontra-se necessitado de um medicamento
que vai além de suas posses, e este não restou fornecido por meio de
políticas públicas ineficazes, ou quando o hipossuficiente vai aos
hospitais públicos e não encontra leito para se internar, é a Função
Judiciária, que provocada diante da ineficiência do Estado-Administração
que será capaz de obrigá-lo a pagar o remédio e a providenciar o leito,
ainda que em hospital privado caso não haja realmente leitos
disponíveis em hospitais públicos, para que desta forma se faça cumprir o
Direito Fundamental à saúde.
Em um Estado liberal, onde não teríamos um Estado intervencionista,
não teríamos um protagonismo da Função Judiciária tendente a prestações
positivas de Direitos Fundamentais, o Estado-Administração estaria livre
para negar tais Direitos por não ser este o seu papel fundamental, que
vale dizer, provavelmente, nem na Constituição estariam elencados esses
direitos como Direitos Fundamentais, já que promover-se-ia um modelo de
Estado não-prestador.
Especulando um modelo de Estado social como é o nosso, mas sem o
protagonismo da Função Jurisdicional, o Estado-Administração
simplesmente poderia perpetrar as ineficácias de suas políticas públicas
que estaria livre de uma intervenção jurisdicional eficaz garantidora
do Direito fundamental à saúde.
O Direito fundamental a educação não fica excluído da mais completa
ausência de critério no que tange a implementação de políticas públicas.
Com uma política desastrada, incompetente e irresponsável, em 2010, por
exemplo, o Brasil já possuía 1.240 cursos de Direito. Pasmem, o número
total de cursos de Direito no restante do mundo, excluído o Brasil
somava 1.100. O Brasil sozinho possuindo mais cursos de Direito
autorizados que a soma dos cursos de Direito de todo o mundo, repeti
pelo absurdo que representa. Os dados foram importados do portal IG, no
blog Lei e Negócios.
Como resultado temos uma absurda saturação de advogados quase
irreversível, onde a oferta de oportunidades de empregos é risível se
comparada a necessidade de colocação de profissionais no mercado. Nem a
prova da OAB, que reprova muito mais que aprova pela baixíssima
qualidade do ensino é capaz de dignificar o mercado. Aos advogados
sobram a quase indigna peneira dos concursos públicos, já que a
mão-de-obra aproveitada no mercado na função de advogado não chega a
dois dígitos em porcentagem. Sobra ainda o que a grande maioria vem
optando, uma guinada profissional para bem longe da indignidade do que a
área jurídica tem hoje a proporcionar aos seus profissionais. Também
não chega percentualmente a dois dígitos a oferta de salários dignos,
seguindo-se a lei de mercado da oferta e da procura.
Hoje a qualquer profissional de nível médio é oportunizado salário
maiores que a maior parte dos profissionais do Direito, em uma
inelutável inversão de valores pela incompetência das políticas públicas
perpetradas. São cinco anos de curso que não se revertem em um produto
hábil a gerar o retorno esperado, ao contrário, capacita os
profissionais para o fracasso e a frustração.
Neste ponto, onde a jurisdicionalização da questão é de difícil
cogitação, onde a discricionariedade do mérito administrativo caminha
com superlativa liberdade, é a sociedade quem paga a conta da
incompetência do Estado-Administração.
E contra um Legislativo ineficaz, há remédios? E quando o Legislativo
não legisla, e normas constitucionais com eficácia limitada (não
auto-executáveis) não conseguem cumprir seu papel pela falta de eficácia
proporcionada pela omissão legislativa? Sem a preponderância do
Judiciário constitucionalizada como é hoje, não haveríamos instrumentos
como o Mandado de Injunção ou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por
omissão, que vale dizer, possuem uma eficiência menor que a desejável.
Digo isto, pois a tutela jurisdicional não pode ser difundida e sim
prestada materialmente a quem procurou o judiciário, e este (Judiciário)
não possui meios normativos para obrigar o Legislativo a cumprir o seu
papel de legislador positivo. O Judiciário apenas dá ciência da mora
legislativa, mas não pode obrigar a legislar em determinado prazo sobre
um direito fundamental não regulamentado. Diria que, a intervenção
jurisdicional neste caso é menor que a desejável no tocante ao
Legislativo, já que com relação ao Executivo a política pública terá que
ser implementada no prazo de 30 dias, gerando uma maior eficácia "erga
omnes" do Direito material fundamental sonegado.
É nesta esteira que infirmo o quanto pífio são os argumentos de
"ativismo judicial", de separação de poderes, por despidos de qualquer
cognoscibilidade minimamente aferível ao caso. O princípio da separação
de Poderes é fundamento do Estado Federativo e deve ser respeitado nos
estritos termos da Constituição, e na forma do exposto, quis-se
demonstrar que a preponderância interventiva do Judiciário é o espírito
do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição Republicana de
1988 e assim deve permanecer. Certo porém, é que tanto o Executivo como
o Legislativo, omissos em seu deveres, não são sancionados por suas
omissões, o que faz gerar inelutável ineficácia da tutela jurisdicional
pretendida.
Para findar, faço lembrar que o princípio da Máxima Efetividade dos
Direitos Fundamentais encontra-se albergado pelo legislador constituinte
no art. 5º, parágrafo 1º da CF/88, sendo um dos fundamentos para que a
função Jurisdicional de poder quando provocada em sua inércia
intervenha, a fim de garantir na maior proporção a aplicação da máxima
efetividade dos Direitos Fundamentais. Quando estando em mora
prestacional o Estado-Administração ou o Estado-Legislativo, uma
intervenção do Judiciário constitucionalizada se faz imperiosa a fim de
se garantir a efetividade e a supremacia da Constituição.
Fugir deste modelo de preponderância da Função Judiciária é soterrar o
texto constitucional e com ele o Estado Democrático de Direito,
elegendo as instituições políticas como pilares do Estado. Pela teoria
dos "checks in balances", dos freios e contrapesos, corolário do
princípio da separação de poderes, que busca coadunar a dicotomia
relevância da função X limitação do poder, há que se ter o controle e
vigilância recíprocos de uma função de poder sobre a outra relativamente
ao cumprimento de suas funções constitucionais. Coube a Função
Judiciária a guarda da Constituição e a promoção de sua máxima
efetividade, por isso não há que se falar em rompimento da harmonia e
independência das funções de poder pelo "ativismo judicial", mas sim de
respeito à harmonia e independência nos termos da Constituição. Esta é a
exegese constitucional que deve ser feita para um Estado Democrático
que não é político, mas de Direito.
Por Leonardo Sarmento